terça-feira, 21 de agosto de 2018

Abuso

No primeiro ano da faculdade, minha referência de jornalista era o Caco Barcellos, autor de dois dos meus livros de investigação jornalística favoritos: O Abusado e Rota 66. O primeiro traz um relato em primeira mão (trabalho de campo), de consistência imparcial - ainda que moderada por própria dificuldade do impacto que a linguagem pode causar - sobre a trajetória do Marcinho VP, líder do Comando Vermelho, da sua ascensão à sua queda, com entrevistas com pessoas próximas, familiares, policiais exonerados etc, tudo numa narrativa concisa e coerente aos fatos. É um livro de mais de 500 páginas que consumi como se fosse um irresistível hambúrguer num dia de TPM. O segundo é uma denúncia indireta - com nomes pouco disfarçados dos personagens - aos comandantes da Rota e dos seus casos de extermínio em massa. O trabalho minucioso e sensível do Caco me encantava, eu sentia que era isso que eu queria fazer. Caco romanceava duas histórias que se confundem, porque em ambas há o abuso da polícia militar e a impotência do cidadão comum de se defender desses abusos e deixar de ser vítima. Quase dois anos depois, comecei um estágio numa editora sendo explorada redatora/repórter assistente de duas revistas, uma de artesanato e outra de gastronomia. Não consigo resumir a série de abusos que vi e vivenciei naqueles insuportáveis 9 meses. Foi a primeira vez que pedi demissão na vida. Ambiente opressor, machista e elitista, onde a maioria, veja bem, era composta por mulheres, desde a recepção à sala da editora-chefe. A editora faliu. Muitos funcionários dali hoje trabalham com a publicidade mais tosca que existe, que é das mídias sociais, feita por ex-jornalistas que escrevem textões sobre produtos achando que estão informando e não vendendo, mídia barata, trabalho sem conceituação, apenas textão explicativo. Gosto de rir porque eu mesma já acreditei nessa mentira e gosto de ver pessoas arrogantes quebrando a cara. É o prazer da vingança indireta. Outros trabalham em jornais de bairro, ganhando pouco e dependendo dos releases da subprefeitura local. Ou seja, não é um trabalho de redação ou reportagem, e sim de edição, você apenas altera parte do conteúdo de um texto escrito por alguém, que tem diversos objetivos, inclusive. Lembrando que press-release é o começo da propaganda, em conjunto com a relações públicas, adentrando o jornalismo. O press-release é o material do assessor de imprensa. É o ópio dele, é quando ele transforma produto em conteúdo, travestido de informação. Naquela mesma época eu já havia aprendido as teorias de pharmakon, e sabia que o que eu trabalhava também era cosmética. Alguns colegas de sala trabalhavam com o veneno, em revistas de fofocas e/ou sensacionalistas. Anos depois, acabei migrando para a publicidade numa agência de health care em que boa parte do meu trabalho era conceituar remédios e, com o tempo, minha linguagem de trabalho foi se transformando. Eu, que acreditava na linguagem como forma de remediar, provei do meu próprio veneno. Caco Barcellos a essa altura já estava em Paris, local onde encontrou exílio após a perseguição (de policiais, políticos e traficantes) dos que trataram O Abusado como um enaltecimento da figura do dono do morro, mas que também expôs muita gente. Na época, o texto de Caco foi comparado ao que fizeram os autores dos livros didáticos sobre a história de Che Guevara: "transformou o bandido num herói". Eu pensava se eu teria culhões de invadir uma zona de guerra, como o Caco, sob o risco de ser morta ou ganhar um Pulitzer, para o orgulho de minha família, enquanto tomava café expresso sentada dentro de um pequeno escritório numa região classe média de São Paulo. Momento confuso da vida. Vivia um relacionamento abusivo. Ganhava pouco mais do que no estágio de 3 anos antes. Minha mãe se recuperava de um câncer. E eu ainda sofria com os pós-efeitos de ataques de gordofobia. Experimentava o desgosto de episódios de anorexia e depressão. E não encontrava mais chão. Continuei por inércia. Passados quase 3 anos no mesmo lugar, mesmos clientes, um salário um pouco maior e um peso nos ombros por conta de todo estresse que aquela situação me causava, depois de vários relacionamentos interpessoais fracassados, várias questões, pessoas e situações difíceis, todas vividas durante esse período, passei a pensar na morte como subterfúgio para um grito interno. Muita coisa mudou depois disso. Hoje, anos e anos depois, encontro questões parecidas, mas notei que em grande parte das escolhas que tomei, das situações opressoras que mantive - e depois corri num impulso de desespero -, eu era a minha principal abusadora. Mas isso só seria possível de se concluir se eu acreditasse que minhas escolhas são inerentes ao ambiente e a todos os fatores que se movimentam ao meu redor, como se eles não me afetassem. Hoje, concluo que a melhor escolha é aquela que é tomada através da crença no próprio juízo do momento, mesmo que se ao olhar para trás, não faça sentido ou você não se reconheça. Pra não dizer mais: fugir de abusos em quaisquer situações, seja no corporativismo, nos relacionamentos afetivos e interpessoais e, claro, antes de tudo, consigo mesmo.

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