Vida de menina
Eram 5 horas da manhã do sábado de 31 de janeiro de
1998, quando despertei com o cantar do galo que pairava sobre o telhado de
nossa casa. Era um lar humilde situado em Valparaíso, cidade com menos de 3 mil
habitantes, a quase 600 quilômetros da capital paulista. Nossa casa ficava
dentro de um sítio no qual nossa família trabalhava diariamente. As paredes
eram feitas de tábuas ocas, o teto caía aos pedaços, repleto de manchas e mofos
causados pela umidade dos dias de chuva, e o chão, ah o chão... Era de terra
batida, vermelha e mal cheirosa. E, acredite, varrê-lo era um pesadelo no qual
eu e minha irmã mais nova vivenciávamos todos os dias. Carmem jogava água com
um balde, enquanto eu tirava o acúmulo de sujeira com uma vassoura de palha,
tomando o máximo de cuidado para não levantar pó. Tínhamos de repetir essa
atividade pela casa inteira, menos o banheiro, que era o único lugar que havia piso
e azulejos na parede, e isso só foi possível quando meu falecido pai vendeu uma
vaca de criação - a Mimi, que eu e meus irmãos tanto amávamos – para um
paulista que iria arrendá-la fora dali. O senhor era mais esperto do que o
pobre homem, cujo valor mais alto de dinheiro que já teve em mãos foram quatrocentos reais, e no qual acreditou que com aquela quantia seria possível
reformar toda a casa e ainda comprar um aparelho de DVD. Por fim, seu José,
como meu pai era chamado, apenas pôde reformar o banheiro, o que para nós,
crianças, era insignificante.
Lembro-me bem de quando ele voltou para casa aos
prantos, achando que o dono da venda havia o enganado: “Me roubaram muié, me
roubaram!”. Era o que ele dizia para minha mãe, que o abraçava e falava quase
que sussurrando: “Ele vai pagá pelo que fez homi, ele vai pagá!”. Depois de
algum tempo aquelas reclamações pareciam ser menos preocupantes, porque toda
vez que Dona Conceição dizia que alguém iria pagar por algo, a pessoa realmente
pagava de alguma forma. E eu não digo isso porque o tal do dono da venda - que
mau algum teria feito ao meu pai a não ser ter cobrado o valor certo da
mercadoria - de repente teria ido lhe pedir desculpas ou devolvido o dinheiro.
Mas, duas semanas depois, descobrimos que o homem, na noite posterior do
incidente, teria se engasgado enquanto comia uma bisteca de porco no jantar, e
faleceu.
Seu José e Dona Conceição, meus pais, eram caseiros
do sítio de um rico casal de fazendeiros Senhor Guilherme e Dona Luiza, os
Alves, era como os chamávamos. Eu não sei dizer ao certo se eles eram realmente
afortunados, mas nós percebíamos a diferença da vida que levávamos e a rotina
deles. Senhor Guilherme trocava de carro a cada três meses, mas nunca estava
presente porque viajava bastante. Era um homem bem apessoado, alto, de costas
largas e braços fortes, amedrontava muita gente com sua aparência viril e sua
voz grave e estridente. Nunca soube dizer exatamente no que trabalhava, ou o
que fazia em suas viagens, mas sabia que esse emprego lhe rendia muitos frutos.
Toda vez que voltava de uma viagem, trazia consigo algumas histórias para
contar, além de charutos e vinhos, que dividia com meu pai sempre que podia. Os
dois se sentavam à frente da beira de um lago que ficava a cinco metros de
nossa casa, e conversavam desde depois do jantar até à madrugada do dia
seguinte. O magnata relatava as “aventuras” que havia tido na última viagem,
enquanto Seu José apenas escutava e tragava o vapor de charutos de boa
qualidade. E foi exatamente dessa forma que meu pai passou a viciar em
cigarros, a principal razão para o surgimento de um câncer que o matou alguns
anos depois.
Eu deveria ter doze anos nessa época e ainda me
divertia com os restos de brinquedos que a Dona Luiza doava para nós.
Geralmente eram bonecas defeituosas, algumas sem cabeças, outras sem pernas ou
braços, que a filha mais nova do casal, Regina, enjoava e depois destruía. Era
sempre uma festa, quando toda última sexta-feira do mês, minha mãe chegava em
casa carregando um saco de lixo cheio nas costas, e uma cesta repleta de
pãezinhos e bolos, na outra. Meu pai esquentava o leite, e deixava um pote de
manteiga sobre a mesa, somente à espera de Dona Conceição entrar pela porta. Como
em um ritual, ele pegava a cesta de sua mão e colocava sobre a mesa, depois lhe
dava um beijo em sua testa, enquanto as crianças avançavam sobre o saco para
ver o que a filha dos Alves teria “jogado fora” dessa vez.
No entanto, a última sexta-feira daquele mês de
janeiro havia sido diferente. Dona Conceição retornou apenas com uma enorme
cesta de vime, que ela mal conseguia carregar. Ainda, na entrada do sítio, era
possível escutar a sua voz pedindo por ajuda: “Zé! Mininus! Vem me ajudar! Tá
pesado!”. Meu pai pegou a cesta de suas mãos, enquanto eu e meus irmãos ficamos
esperando na porta da casa. Ela virou-se para nós e disse: “Hoje não tem
brinquedo criançada! A filha da dona cresceu e não qué mais sabê de bonequinha!
Ocê deveria fazê o mesmo minina!”, disse ela passando a mão em minha cabeça,
sob um tom de repreensão. Meu pai abriu a cesta, e para surpresa dele, a mulher
havia trazido metade de um porco assado, além de alguns queijos e um grande
pedaço de bolo de festa: “Quê é isso tudo muié?”. Eram as sobras da festa de
aniversário de Regina, que havia completado treze anos naquele dia: “Alguns
dias atrás essa menina engatinhava, agora já é adolescente! Vê se pode homi!”.
Sentamos sobre a mesa e antes de comermos, fizemos uma oração como de costume.
Durante o jantar, Dona Conceição dizia ao pé do ouvido de Seu José algumas
fofocas que teve conhecimento enquanto estava trabalhando, como se eu ou meus
irmãos não pudéssemos escutar. Uma dessas especulações era de que Regina já
havia tido menstruação e que também não era mais virgem, além de que Senhor
Guilherme teria uma amante na capital.
Tentava fingir que não estava prestando atenção no
falatório que Dona Conceição relatava com tanto prazer. Seu José quase não
escutava o que a mulher dizia, e ela sabia disso, mas sua vontade de desabafar
tudo aquilo que passava diante de seus olhos e no qual deveria se manter calada
era como uma benção para ela. Eles eram muito respeitosos com seus patrões,
sempre nos falavam que aquele casal teria salvado suas vidas, afinal, eles
chegaram naquele sítio sem rumo e com três filhos pequenos e famintos. Talvez
essa família tenha nos salvo mesmo, e deveríamos demonstrar gratidão
eternamente.
Depois de lê três de seus textos, eu resolvi comentar sobre este: A Santa, pela emoção que senti. Apesar de achar que o desfecho poderia ser outro. Gostei da emoção que há no texto.
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