segunda-feira, 12 de novembro de 2012

A Santa - Cap.1 - Vida de menina


Vida de menina

Eram 5 horas da manhã do sábado de 31 de janeiro de 1998, quando despertei com o cantar do galo que pairava sobre o telhado de nossa casa. Era um lar humilde situado em Valparaíso, cidade com menos de 3 mil habitantes, a quase 600 quilômetros da capital paulista. Nossa casa ficava dentro de um sítio no qual nossa família trabalhava diariamente. As paredes eram feitas de tábuas ocas, o teto caía aos pedaços, repleto de manchas e mofos causados pela umidade dos dias de chuva, e o chão, ah o chão... Era de terra batida, vermelha e mal cheirosa. E, acredite, varrê-lo era um pesadelo no qual eu e minha irmã mais nova vivenciávamos todos os dias. Carmem jogava água com um balde, enquanto eu tirava o acúmulo de sujeira com uma vassoura de palha, tomando o máximo de cuidado para não levantar pó. Tínhamos de repetir essa atividade pela casa inteira, menos o banheiro, que era o único lugar que havia piso e azulejos na parede, e isso só foi possível quando meu falecido pai vendeu uma vaca de criação - a Mimi, que eu e meus irmãos tanto amávamos – para um paulista que iria arrendá-la fora dali. O senhor era mais esperto do que o pobre homem, cujo valor mais alto de dinheiro que já teve em mãos foram quatrocentos reais, e no qual acreditou que com aquela quantia seria possível reformar toda a casa e ainda comprar um aparelho de DVD. Por fim, seu José, como meu pai era chamado, apenas pôde reformar o banheiro, o que para nós, crianças, era insignificante.

Lembro-me bem de quando ele voltou para casa aos prantos, achando que o dono da venda havia o enganado: “Me roubaram muié, me roubaram!”. Era o que ele dizia para minha mãe, que o abraçava e falava quase que sussurrando: “Ele vai pagá pelo que fez homi, ele vai pagá!”. Depois de algum tempo aquelas reclamações pareciam ser menos preocupantes, porque toda vez que Dona Conceição dizia que alguém iria pagar por algo, a pessoa realmente pagava de alguma forma. E eu não digo isso porque o tal do dono da venda - que mau algum teria feito ao meu pai a não ser ter cobrado o valor certo da mercadoria - de repente teria ido lhe pedir desculpas ou devolvido o dinheiro. Mas, duas semanas depois, descobrimos que o homem, na noite posterior do incidente, teria se engasgado enquanto comia uma bisteca de porco no jantar, e faleceu.

Seu José e Dona Conceição, meus pais, eram caseiros do sítio de um rico casal de fazendeiros Senhor Guilherme e Dona Luiza, os Alves, era como os chamávamos. Eu não sei dizer ao certo se eles eram realmente afortunados, mas nós percebíamos a diferença da vida que levávamos e a rotina deles. Senhor Guilherme trocava de carro a cada três meses, mas nunca estava presente porque viajava bastante. Era um homem bem apessoado, alto, de costas largas e braços fortes, amedrontava muita gente com sua aparência viril e sua voz grave e estridente. Nunca soube dizer exatamente no que trabalhava, ou o que fazia em suas viagens, mas sabia que esse emprego lhe rendia muitos frutos. Toda vez que voltava de uma viagem, trazia consigo algumas histórias para contar, além de charutos e vinhos, que dividia com meu pai sempre que podia. Os dois se sentavam à frente da beira de um lago que ficava a cinco metros de nossa casa, e conversavam desde depois do jantar até à madrugada do dia seguinte. O magnata relatava as “aventuras” que havia tido na última viagem, enquanto Seu José apenas escutava e tragava o vapor de charutos de boa qualidade. E foi exatamente dessa forma que meu pai passou a viciar em cigarros, a principal razão para o surgimento de um câncer que o matou alguns anos depois.

Eu deveria ter doze anos nessa época e ainda me divertia com os restos de brinquedos que a Dona Luiza doava para nós. Geralmente eram bonecas defeituosas, algumas sem cabeças, outras sem pernas ou braços, que a filha mais nova do casal, Regina, enjoava e depois destruía. Era sempre uma festa, quando toda última sexta-feira do mês, minha mãe chegava em casa carregando um saco de lixo cheio nas costas, e uma cesta repleta de pãezinhos e bolos, na outra. Meu pai esquentava o leite, e deixava um pote de manteiga sobre a mesa, somente à espera de Dona Conceição entrar pela porta. Como em um ritual, ele pegava a cesta de sua mão e colocava sobre a mesa, depois lhe dava um beijo em sua testa, enquanto as crianças avançavam sobre o saco para ver o que a filha dos Alves teria “jogado fora” dessa vez.

No entanto, a última sexta-feira daquele mês de janeiro havia sido diferente. Dona Conceição retornou apenas com uma enorme cesta de vime, que ela mal conseguia carregar. Ainda, na entrada do sítio, era possível escutar a sua voz pedindo por ajuda: “Zé! Mininus! Vem me ajudar! Tá pesado!”. Meu pai pegou a cesta de suas mãos, enquanto eu e meus irmãos ficamos esperando na porta da casa. Ela virou-se para nós e disse: “Hoje não tem brinquedo criançada! A filha da dona cresceu e não qué mais sabê de bonequinha! Ocê deveria fazê o mesmo minina!”, disse ela passando a mão em minha cabeça, sob um tom de repreensão. Meu pai abriu a cesta, e para surpresa dele, a mulher havia trazido metade de um porco assado, além de alguns queijos e um grande pedaço de bolo de festa: “Quê é isso tudo muié?”. Eram as sobras da festa de aniversário de Regina, que havia completado treze anos naquele dia: “Alguns dias atrás essa menina engatinhava, agora já é adolescente! Vê se pode homi!”. Sentamos sobre a mesa e antes de comermos, fizemos uma oração como de costume. Durante o jantar, Dona Conceição dizia ao pé do ouvido de Seu José algumas fofocas que teve conhecimento enquanto estava trabalhando, como se eu ou meus irmãos não pudéssemos escutar. Uma dessas especulações era de que Regina já havia tido menstruação e que também não era mais virgem, além de que Senhor Guilherme teria uma amante na capital.

Tentava fingir que não estava prestando atenção no falatório que Dona Conceição relatava com tanto prazer. Seu José quase não escutava o que a mulher dizia, e ela sabia disso, mas sua vontade de desabafar tudo aquilo que passava diante de seus olhos e no qual deveria se manter calada era como uma benção para ela. Eles eram muito respeitosos com seus patrões, sempre nos falavam que aquele casal teria salvado suas vidas, afinal, eles chegaram naquele sítio sem rumo e com três filhos pequenos e famintos. Talvez essa família tenha nos salvo mesmo, e deveríamos demonstrar gratidão eternamente.

Amor [in] Órbita

Ele rastejava em direção ao véu que, sobreposto às margens arenosas da costa, imergia, fulminante, sob as ondas do mar e dançava levemente ao embalo daquela brisa. 

Ela havia lhe dado às costas e ele, contendo o último sopro de esperança emanando em seu peito, acreditava que aquela situação só estaria acontecendo devido a um súbito ataque de confusão em que ela teria se submetido ao encarar o altar e os olhares julgadores daqueles que estavam presentes.

Mal sabia ele que ela abandonara seus compromissos há algum tempo, dado o fato de que o relacionamento deles já não era mais o mesmo. "Mas qual relacionamento continua perfeito depois de cinco anos?", era a questão que ele vivia repetindo a si mesmo quando passou a desconfiar da fidelidade de sua noiva.

Que loucura estaria passando por sua cabeça ao pedir a mão da mulher que supostamente o traía? E dela, ao aceitar se casar com aquele que já não amava mais?

Apostar no amor como um fator de risco, que poderia salvar qualquer relacionamento, era algo comum naquela sociedade. Seus habitantes acreditavam piamente que aquele sentimento, que costumava construir laços eternos, fosse inquebrável. Só se amava uma vez na vida.

Naquele momento, ela corria sem rumo, com os pés descalços que sofriam ao pisar na areia escaldante daquela primavera de sol. Ela havia planejado há dois dias o plano de fuga de seu próprio casamento, mas, obviamente algo havia dado errado. 

A ressaca moral vinha acompanhada à dor na consciência após perceber que seu amante não a estava esperando conforme planejaram. Ele perdera a coragem, surgida no calor do momento, em largar sua esposa e duas filhas para viver um amor proibido.

Apesar do receio em relação ao o que viria depois daquela situação, que deixava suas pernas levemente trêmulas, ela se sentia uma pouco orgulhosa de seu desbravamento ao tentar fugir daquilo que acreditava ser um inferno.

No entanto, um simples gesto involuntário, que lhe fez virar para trás, trouxe à tona a imagem de tudo aquilo que ela não queria sentir. Seu noivo estava debruçado sobre o véu, que calhou a escorregar pelos seus lisos fios de cabelo no instante em que correu para longe do altar, após deliberadamente ter dito "não" aos olhos lacrimejados daquele fraco homem.

Ele apertava firmemente aquele fino pedaço de tecido contra o peito, forçando para que não escapasse pelas suas mãos. E perguntava a si mesmo, em voz alta: "O que eu fiz de errado?".

Entre os convidados, rodas de cochicho se formaram a respeito da noiva, coisas que provavelmente não lhe agradariam. Enquanto aquela ex namorada, ainda ressentida por ter sido trocada há cinco anos, abraçava-lhe as costas e sussurrava algo possível de ser compreendido através de uma paralela e quase inútil leitura labial: "Ela não te merecia".

Ela assistia àquela cena com o rosto já completo de lágrimas, que lhe salgaram a boca no instante em que clamou pelo nome de seu amado. Todos os olhares se voltaram à ela, e ele foi à sua direção, ainda carregando o pedaço de tecido que lhe compreendia o sentimento guardado: "Não vá embora", ele disse.