quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Libertação e o racismo deles de cada dia

Quando penso em maneiras de me livrar de um peso muito grande, não consigo me imaginar fazendo outra coisa melhor que não seja escrevendo. Escrever é a minha maior arma desestabilizadora a tudo que me sufoca, o meu grito contra a sociedade que me rejeita, o alívio e o calmante às dores emocionais e, provavelmente, o passaporte para a libertação. Tenho lido bastante sobre racismo e feminismo interseccional asiáticos e muito tenho notado e relembrado o quanto minha liberdade foi invadida, meu despeito tirado à força e minha paz arrancada. Desde que me tenho por gente, percebo que nunca fui tratada como igual pelas outras pessoas. É um sentimento de não-pertencimento enraizado e que, conforme fui crescendo, foi se aflorando. Começando na pré-escola, desde a entrada na perua, durante todo o trajeto e com o passar do dia, eu ouvia, de crianças a adultos, piadinhas sobre como meus olhos eram puxados, perguntas sobre como eu conseguia enxergar, se meus pais sabiam falar em português, sobre a comida que eu comia, entre outras coisas. Para mim, eu era uma criança normal, mas as pessoas sempre me trataram com diferença. Conforme fui crescendo, as insinuações foram piorando, porque eu comecei a ser fetichizada e odiada. Perguntavam se a minha vagina era invertida, se eu só ficava com japas, e ouvia coisas como: "nunca fiquei/provei/comi uma japinha". Muitas vezes me senti com raiva de ser quem eu era, sonhava em acordar um dia e no reflexo do espelho encontrar uma menina branca e de olhos grandes. Quantas vezes me perguntei por que eu tinha que ser diferente. Comecei a ter ódio de ser quem eu era. Comecei a notar que as pessoas se aproximavam ou se afastavam de mim por conta da minha aparência. E o pior disso tudo, é que eu sempre estive exposta, ajudando meus pais na loja deles, cresci vendo eles sendo tratados de maneira diferente, ouvia/ouço meu pai sendo chamado de qualquer outra coisa que não fosse o nome dele, o mesmo acontecia com a minha mãe, minha irmã e qualquer outro parente. Acontecia e acontece o tempo inteiro. Isso cansa, isso dói, porque te faz duvidar de si mesmo. Mas tudo isso despertou em mim uma fúria que se reverteu em me distanciar das minhas origens ou abraçá-la, num dilema infinito. Foi então que eu encontrei o feminismo e descobri que precisava me empoderar, que precisava aprender a me colocar no lugar dos outros, a me ver na pele dos outros. Só que notei que as pessoas também não se colocam no meu lugar, ou no lugar de mulheres como eu. Amarelas, orientais, asiáticas. Hoje eu sei: eu sou diferente. A minha cor é diferente, o meu biotipo é diferente, a minha história também é diferente. E nem por isso dói menos ou mais, apenas a gente vai criando uma armadura. Eu sei me defender, o problema é quando esses pequenos abusos acontecem em ambientes que deveriam ser seguros. Não é todo dia que você acorda empoderada, pronta pra se defender com classe e dignidade. Tem dias que eu só queria ser invisível. Tem dias que os olhares incomodam. Tem dias que a verdade não é sempre branda e nem os abusos são evidentes. Tem dias que você não quer explicar para as pessoas que elas estão sendo racistas, machistas ou homofóbicos, você só quer que elas calem a boca e fiquem longe de você. Tem dias que você só quer se divertir como uma pessoa qualquer, sem receber olhares e julgamentos, sem ter que ter vontade de mandar alguém calar a boca ou se fuder, sem querer se irritar ou virar os olhos. Olhos que por sinal estão bem abertos e observando essa podridão toda sem tentar absorver tudo de ruim que há.
Hoje, eu me olho no espelho com orgulho de ser quem eu sou. Das minhas histórias contadas em tatuagens, dos meus olhos, do meu cabelo e do meu olhar colérico que muitas vezes diz: cuidado, não mexe comigo. Minha aparência desagrada porque não sigo mais qualquer padrão e eu sei que incomoda. Mas, bastasse o olhar de distanciamento a completa defesa das agressões. E é sobre isso que eu ainda não consegui me libertar. Tô cansada. Ainda não me identifico com capas de revista, ainda não me vejo representada em campanhas de "representatividade", ainda não me sinto acolhida por este feminismo, que descobri ser branco, elitista, classista e racista. E agora apenas decidi que não vou terminar este texto com mais lamúrias e sem resolução, porque é aqui que eu firmo: eu vou me levantar, vou continuar sendo forte e vou começar a me posicionar. E essa sociedade que tanto me rejeitou vai ter que me aguentar.